sexta-feira, outubro 29, 2010

Em memória.

Quando meu pai morreu, recebi de herança muita coisa. Chamava-se João, mas isso não faz diferença mais. Foi homem rico e precavido, gostava de guardar para um futuro que nunca vinha, mesmo depois de já ter ficado bastante claro que ele acumulava mais para a morte do que para a vida. "Esperar, Carlos, a vida é esperar", enquanto afagava minha franja rebelde. Não importa muito, morreu.

Dentre o muito que deixou, o dinheiro foi o mais importante. Fiz meus cálculos e havia o suficiente para o resto da vida, se a levasse tranquilamente. Meu ofício também me ajudava: especializei-me desde cedo em fazer nada, em esperar que decidissem por mim. Não havia mais ninguém, mamãe morrera muito antes e sou o único filho reconhecido por meu pai. Sou sozinho, mais sozinho ainda do que ele era.

Outros itens importantes:  1 casa de praia, 2 apartamentos em São Paulo (um deles transformado em biblioteca privada por meu pai), 1 apartamento no Rio, alguns automóveis. Passei a usá-los todos durante o ano, dividindo minha atenção entre os imóveis igualmente, numa planilha. Ignoro o contexto em que meu pai adquiriu cada um deles, também não entendo muito bem porque ele construiu a biblioteca.

O que tenho para contar de menos trivial, no entanto, refere-se justamente a esse apartamento transformado em fortaleza de livros. Meu pai passava frequentemente semanas trancado aqui, totalmente alienado do mundo exterior. Felizmente, dada a natureza de seus negócios, nunca teve prejuízo por isso (ao menos é no que acredito, pois conversávamos pouco). Me arrependo um pouco de não ter perguntado a ele o que fazia lá.

Suponho que ele me responderia, com sua mania de encarar o nariz das pessoas: "Ora, leio!". Talvez risse, mas fica difícil saber ao certo, já que está morto. Também não é isso, o que importa de fato (fico um pouco encabulado, pretendia ser científico e direto e tudo que eu digo sai assim, nostálgico) é o que encontrei lá, atrás de uma das bancadas de livros. Se a arrastei, obviamente, é porque desconfiei das marcas no piso de madeira. Uma portinha de madeira, trancada por um cadeado ainda mais simples que ela, revelou-se por trás dos livros.

Não tive coragem de abri-la, confesso que por medo de me decepcionar com o pai. Ao invés disso, passei o resto de minhas semanas planejadas lendo os livros com as lombadas mais interessantes e dormindo bastante. Posso ser chamado de vagabundo e frívolo, mas não é bem o caso: cansei-me da vida, mas morrer já é demais. Não cito os autores que li pois não lembro muito bem; além disso, não quero me filiar explicitamente a nenhuma facção literária. Não combino bem com a militância política.

Pois que ao fim das semanas, trancando a porta do apartamento, percebo uma chavezinha logo ao lado da chave principal. Ignorara ela sempre, por pequena e inespecial demais. Naquela hora, no entanto, sabia o que era e até cogitei que aquilo era coisa do destino. Bobagem, já que a chave sempre estivera lá, mas fez sentido na hora. Segui até a portinha e destranquei o cadeado. Abri-a e entrei.

Peço desculpas pela elementaridade de minha descrição espacial, nunca soube fazer bem. Era um quartinho pequeno, um antigo banheiro. Seus azulejos azuis, intatos, lembravam porcelanas portuguesas. Rico, limpo, secreto. Havia um altar ao meio, iluminado por um painel de LEDs no teto, provavelmente aceso todo o tempo. Em cima dele, um relógio de bolso prateado e um pouco manchado de negro. A simplicidade significativa do lugar me levou diretamente ao relógio.

Nunca o havia visto, mas certamente pertencera a meu pai. Não sei, mas sei que sei. Toquei-o, esperando algo fantástico, ou talvez alguma lembrança evocada pelo tato. Nada. Encarei-o, em busca de detalhes ou algo assim. Em vão. Era um relógio plenamente normal, seus ponteiros fininhos marcando quase a hora certa. Os algarismos romanos, atemporais, ostentavam-se no pequenino. Os ponteiros não se moviam.

Tentei ajustar o horário na pequena rodela na parte de cima do relógio. Muito emperrada, demorei para adiantar um minuto sequer. Havia 15 minutos de diferença entre o tempo real e o tempo que o relógio indicava. Segui forçando as engrenagens, conquistando minuto a minuto os milímetros. Não precisava fazer tanta força, mas o mecanismo parecia voluntariamente negar meu avanço, retardo mecânico. Quando havia corrigido os 15 minutos de atraso, meu celular apontava um horário diferente, já 15 minutos depois.

Deixei-o novamente no altar, decepcionado. Sentei-me no chão, encarei o teto, senti-me só. Passaram-se 15 minutos, assim. Notei meu erro, grave: o relógio estaria, então, 30 minutos atrasado. Levantei-me de pronto e voltei a tentar corrigi-lo. Não sei quanto tempo passou assim, mas consegui manter os 30 minutos de atraso enquanto me mantive acordado. Exausto, acabei dormindo nos azulejos frios.

Acordei assustadíssimo, segurando fortemente o relógio junto ao meu peito. Chequei as horas e não soube dizer se estava 4 horas adiantado ou 8 horas atrasado. Fui para frente ou para trás no tempo? Passou o tempo sem que eu passasse o tempo. Haveria consequências maiores? Levantei-me apoiando no altar, que se revelou muito mais instável do que o esperado e caiu como caem os colossi. Quebrou-se em mil pedaços.

Encolhi-me com medo do golpe de cinto de meu pai. Não veio. Ele está morto. Cogitei lançar o relógio contra a parede, mas a curiosidade me impediu. O que aconteceria se eu esperasse até a hora certa e mantivesse o relógio sincronizado com a realidade? Talvez o tempo parasse, algo assim da teoria da relatividade. Não sei. Só sabia que eu não seria como meu pai, não passaria os dias passando o tempo enfurnado naquela salinha.

Saí, encostei a porta e lancei-me no sofá. Desenhei planos e esquemas até chegar ao perfeito. Com tanto dinheiro e posses, não foi nada complicado conseguir pessoas o suficiente para manter o relógio funcionando. Muitas delas, na verdade, se negam a receber qualquer dinheiro pela tarefa. Sentem-se bem adiantando o relógio, dizem, é como se o tempo dependesse delas. Malucas. Tivemos alguns problemas no começo, mas conseguimos manter a hora já há alguns anos.

Não sei se entendi bem sua mensagem, pai. Espero que lhe agrade.

domingo, outubro 24, 2010

nobreza

respirávamos hélio

quinta-feira, outubro 07, 2010

carta-aberta, resposta indireta, sim.

só existe na ausência, mesmo.
sentir falta é o tom.

não sei, assim você me deixa emocionado demais pra dar uma boa resposta, espertinha.

de repente transparência e não sei como lidar, ainda.