quarta-feira, março 30, 2011

novela - parte 1

"Não queria que parecesse que eu estou querendo chamar atenção demais e eu mesmo acho um pouco imbecil fazer isso aqui, mas pensando bem – não tive tanto tempo assim pra pensar – achei que valeria a pena. Não vou escrever mais pra não soar mais melodramático ainda.

Estou com câncer. No intestino, principalmente, mas no fígado, no sangue, em tudo, mais ou menos. Acho que vocês entendem o que eu quero dizer.

Se vocês tiverem qualquer coisa pra resolver comigo, acho que é agora ou nunca. Não queria fazer um anúncio público, assim, virar fofoca grande num só segundo, mas é melhor do que virar fofoca pequena recheada de remorso das pessoas pra quem eu teria coragem de contar. Enfim, se tiverem o que dizer, me liguem.

Mas só se for alguma coisa de verdade. Não tô muito bem do humor".

Ele publicou a mensagem antes que desistisse. Reclinou-se com a cadeira, passou a encarar os volumes de Marcel Proust. O maior problema de morrer vai ser deixar isso tudo sem acabar, não os livros chatos do proust, mas tanta coisa indefinida, tanto chão que poderia ter sido mas não foi.

Ele já havia tido tempo para racionalizar as coisas e já inventava que seu medo não era da morte em si, mas de suas consequências. Porque a morte, não é mesmo? Recebeu uma mensagem no celular – "Sério?" "Sim, um café?" "Eu tô no trabalho" "Tudo bem, eu aguento até às dezenove" "é" "na sumaré, então?" "Sim." "Ok" – ele já sabia que seu irmão seria o primeiro a reagir abertamente à notícia, embora seus dois colegas aleatórios que curtiram seu status no facebook o deixassem um pouco mindfucked.

Deu tempo para um banho.

Mas eles curtiam o quê?

Outra mensagem no celular: "sério?", de um número desconhecido. Sério. Ele se vestiu, assegurou-se que estava com tudo que precisava e saiu. Assim que fechou atrás de si o portão do prédio, percebeu que não havia ninguém lá esperando-o sair do prédio, e mesmo as pessoas na rua o ignoravam ou o notavam como sempre. A Internet ainda não havia engolido todo o mundo, mas ele sabia que na faculdade seria diferente e que, de um jeito ou de outro, reconheceriam nele o condenado precoce que era.

Chega de exagerar tudo, e então, numa só caminhada, chegou ao café na Sumaré e se sentou do lado de fora, à espera do irmão. Pediu um expresso, acendeu um cigarro e se afundou na cadeira, observando a rua. Viu uma antiga colega do fundamental passando – muito feia, aliás, e um tanto burra – e riu de verdade, para fora. Mas ele se corrigiu logo, achando que podia estar fazendo o gênero risonho auto-irônico, maluquinho na depressão. Nada disso.

— Fumando?
— Sempre um gênio da observação, o senhor.
— Obrigado. Posso?
— Claro – oferece o cigarro e o assento – à vontade.

Ocuparam-se de acender o cigarro em dupla.

— Mas é verdade, mesmo?
— Mais verdade do que eu mesmo.




sábado, março 26, 2011

foto: Lara no cabeleireiro.

No centro da foto os olhões de Lara se vendo no espelho, olhos pintados e tudo bonito. Suas maçãs do rosto – já normalmente pronunciadas – indicam o começo de sorriso daqueles que se percebem fotografados e sentem prazer por isso. Preta&branca, como todas as outras da mesma série, analógica, cotidiana. O cabeleireiro ergue o cabelo de Lara dos dois lados, como se o examinasse, revelando suas orelhas e seus brincos discretos, o pescoço que, nesse contraste, tem uma poça de sombra em sua profundidade e uma alvura terrível em todo o resto. Só se mostra um pouco do avental que colocaram sobre ela. Como o cabeleireiro lhe puxa os cabelos, Lara tem o rosto levemente voltado para baixo, como uma predadora, deixando-o um pouco mais triangular, menos oval. A camisa do cabeleireiro, listrada, cria uma boa separação de figura e fundo. Desfocadas, no espelho – que possui dois riscos visíveis dividindo suas três partes – duas mulheres bem arrumadas se abraçam firmemente, provavelmente velhas conhecidas. Talvez uma delas esteja grávida, sempre é possível. No canto superior esquerdo, o ventilador de teto de madeira escura está desligado. Uma luz generosa, gorda e suave entra pelo mesmo lado esquerdo, banhando tudo e a todos. As sombras provavelmente eram muito mais suaves do que essas que se desenham no pescoço e no rosto de Lara, mas a fotografia é cheia dessas pequenas traições. Lara não era tão bonita assim, também, nem tão parecida com Anna Karina, mas essa foto as aproximava de forma incrível. A tesoura na mão do cabeleireiro, escondida entre as mechas dela, também não brilhava de jeito tão provocativo. Assim que se percebe a tesoura, a atenção se desloca dos lindos olhos de Lara para ela, não há jeito.

Mais importante de tudo, a foto ignora a minha presença, ignora a minha mão, ignora que fui eu quem pressionei o botão naquela hora, que esperei o abraço daquelas mulheres e o olhar de Lara.

Fotografar você sempre foi, para mim, uma espécie de morte.

domingo, março 20, 2011

fraco bem mais fraco do que eu faria

cafécafécafé cadê o café
alguém fez o café (eu não fiz o café então se tem café é porque fizeram café)
mas a dor de cabeça
a dor de cabeça é insistenteinsistente repetitiva
três dias já
será que é enxaqueca
mais café mais café mais café
(então se tem café é porque fizeram café)

quem fez o café
eu não sei
eu estava dormindo até agora há pouco
agora há pouco
cafécafécafé

lembro de alguém se mexendo ao meu lado
e se levantando
e tomando banho no banheiro
chuveiro vapor toalha
beijo suave no rosto
gotas de suor
dor de cabeça insistenteinsistente repetitiva

agora há pouco café
fraco bem mais fraco do que eu faria
se não fui eu quem fiz falta uma peça nesse guarda-roupa
negòcinho irradia da nuca até o meio da cabeça
dor de cabeça repetitivamente insistenteinsistente
(aiaiai mas se não fui eu só pode ter sido você)

mas você você é quem
qual delas
porque arrearrearre dor de cabeça e talvez
talvez
uma gotinha de álcool demais
e se mais café café café eu quisesse
teria que fazer e faço

três dias já dor de cabeça
mão medindo a febre
cabeça balançando cabeça latejando
não não não nada bem consigo
masmasmas pelo menos uma última noite então
tudo bem
mais ou menos isso não é

você mas você é quem
cheiros na cama cadê os cheiros na cama
cheiroscheiroscheiros só de café
dor de cabeça
impressão de que sim de que você disse sim
que nos deitamos e tudo mais
tudo mais
tudo mais
aí sono dorme
dor mimos
você café
eu cama
eu café
você rua

eu eu eu
queria lembrar porque
meu café está pronto
forte denso irregular
e seu café
fraco bem mais fraco do que eu faria
mas você é quem
dor de cabeça insistentemente repetitiva
falta uma peça nesse guarda-roupa

saudades suas
demais
mas você
você é quem

quarta-feira, março 16, 2011

A nossa canção.

Célia disse que não aguentava mais aquela música tocando sem parar, e era verdade, aquilo não se fazia com ninguém.

– Eu não entendo porque a gente, porque agora, porque não dizem nada... – Eric desconfiava que talvez aquilo fosse apenas um golpe psicológico – Isso deve ser só um golpe psicológico

solipsismo (passageiro)

um quarto vazio é um quarto vazio, ao menos até que você pense nele de outra forma. aí ele deixa de ser um quarto vazio, me parece. sim, eu sei, não é o pensamento mais brilhante do mundo, mas o mundo anda já brilhante demais.

domingo, março 13, 2011

quinta-feira, março 10, 2011

quarta-feira, março 09, 2011

Ata da reunião de ontem.

– O que me incomoda, dentre muitas outras coisas – dizia Rosbife – é que, numa situação dessas, o silêncio seja tão significativo. Não que o silêncio em si queira dizer qualquer coisa, mas enquanto eu escolho o que falar… Quando eu falo, no final das contas, parece que eu estava fazendo de propósito, o silêncio. Um intervalo calculado.

Rosbife, Catupiry e Mortadela ficaram quietos, deitados na cama improvisada no chão. Não sei quanto tempo foi.

– E não é calculado – emendou Rosbife –. Viu só? Pareceu de propósito.

Ficaram em silêncio.

***

Um pouco depois, começou o sexo.

sábado, março 05, 2011

rosa pink.

moça no vestido rosa
disse toda ponderosa
"fica bom em mim, o rosa?"
"fica, claro, sua gostosa!"

the lady, delight in pink
asked to me, while in think
'do you like on me, the pink?'
'well, 'f course, i'd love to sink

actually, i'm on the brink
of takn'off fabric & ink
get you closer 'fore you blink
make you mine with all my stink'

"o alvo da minha prosa
não sua roupa, até jeitosa
é sua bunda vultuosa
vem pra cá que a gente goza."

terça-feira, março 01, 2011

Mais um verão.

– Oh, eu não devia dizer, mas eu digo porque sou otário, mesmo: se eu quisesse eu te enganava, sabia? A senhora não sabe absolutamente porra nenhuma de carros, dá pra perceber isso pelo jeito que você olha pras coisas enquanto eu faço as coisas. Então se eu quisesse eu podia te dizer que o eixo frontal do transmissor secundário sofreu uma avaria severíssima e que agora ou você troca toda a serigrafia aqui no canto da xilogravura ou o carro nunca mais que vai andar, mesmo, e que o conserto é rápido porque tenho todas as peças aqui mas que tudo não sai por menos de 3 mil reais, ou eu podia te dizer logo que o problema é a embreagem, mesmo, coisa simples, mas que as peças e a crise, enfim, que tudo sairia por 3 mil, também, e daria no mesmo, pra mim, mas talvez você se convencesse mais no primeiro cenário do que no segundo. As pessoas gostam de um pouco de complicação, e a senhora, com todo respeito, não parece ser daquelas que iriam pro google procurar a tal xilografia da serragem, então ficaria tudo bem, mas uma pecinha assim custar 3 mil reais seria um absurdo. Mas seria tudo bem, porque você está com pressa ou coisa assim e você não vai usar seu seguro nem vai ter como sair daqui enquanto seu carro não ficar bom, então, senhora, você só poderia cair no meu papo, de um jeito ou de outro, mas, enfim, como você já deve ter percebido, o problema é só essa mangueirinha de nada aqui, cobro 50 reais porque eu também tô cheio dessas peças sobrando e não gosto de ver cliente pagando à toa por bobagem pequena, então você me dá cinquenta reais e eu faço o serviço e você segue adiante e eu fico aqui e ficamos por isso mesmo, igualzinho a antes de seu carro pifar e esquentar e dar um piripaque terrível e eu, bem, eu fico daquele jeito,  com o coração partido de ver mais uma partindo, mais um probleminha menor que não custa nada e que num segundo está pronto, sabe? Então é isso? 50 reais e nunca mais nos vemos?

– Sim, por favor.

– Que bom, fez a escolha certa. Tchau!

***

O carro não funcionou. Na verdade, o motor todo havia se fundido num bloco sólido. As rodovias, todas interditadas pelas enxurradas terríveis, permaneceram assim por 3 semanas. No fim das contas, Tom – o cara da oficina – levou para a cama sua primeira cliente. Foram muito felizes nessas 3 semanas. Quando a enxurrada passou, Tom cedeu sua bicicleta a Natália – a senhora em questão, na verdade beirando seus 30 anos –, que pedalou o mais rápido que pôde rumo à capital. 3 dias depois, os ninjas chegaram à oficina de Tom, sentiram o cheiro de Natália por todo seu corpo e o estraçalharam.