quinta-feira, janeiro 18, 2007

Fuja.

- Então você veio mesmo.

Pedro estava deitado confortavelmente em sua cama, olhando para o ar logo a sua frente, poucos metros adiante. Havia nada, mas havia também um menino nu, olhando fixamente para ele.

- Então você pode me ver.
- Hah, esperava algo diferente?
- As pessoas normalmente não podem.

O menino nu era, também, ao mesmo tempo mas alternadamente, um homem nu de 30 e poucos anos, exatamente igual a Pedro. E era, também, também, ao mesmo tempo todos os intervalos de tempo entre o menino e o adulto, e todos esses eram, também, também, também, exatamente iguais a Pedro caso fôssemos voltando gradualmente sua idade até a que o menino-adulto que estava ali aparentava quando aparentava ser um menino.

- Ponto para mim, então! Mas eu só o vejo porque abriram meus olhos, agora eu sei.
- Sabe mesmo?

Enquanto o menino-adulto falava, seu corpo insistia em mudar e mudar e mudar, indo e voltando no tempo.

- Claro que sei, claro que sei. Ademais, sei e sei e sei.
- Delira, já?
- Sim, posso vê-lo.

Pedro fervia de/em febre. Detalhe na mão trêmula dele.

- Sabe quem eu sou, este é um dos seus sei's.
- Exato. Seja bem vindo, Morte.


Morte não portava uma ceifa, nem tinha seu manto negro e pesado e ossos no lugar de pele. Mas o sorriso ironicamente macabro estava lá, naquele menino-adulto, como o de um esqueleto que tenta conformar/assombrar sua vítima.

- Obrigado, pouquíssimas pessoas receber-me-iam de braços abertos como você.
- Como Cristo. Hah.
- Hah.
- Bom, Morte, mas eu sei que não é esse o caso. Digo, nunca ninguém mais receber-lhe-ia porque você é só meu/minha. Eu sei que há um/uma Morte para cada pessoa, que você não é um organismo metafísico onipresente e onisciente e tudo o mais.

Morte agora estava agora logo ao pé da cama, olhando para os pés de Pedro e ponderando. Pedro fora um menino lindíssimo, um adolescente feíssimo e um adulto mais-ou-menos, então o resultado geral do menino-adulto lá era, em geral, medíocre.

- Você está certo, Pedro. Eu existo única e exclusivamente para lhe matar/morrer, não há mais nada, nada.
- Certo. Morte, eu tenho uma idéia diferente, eu vou lhe matar.
- Ora, mesmo?

Detalhe na outra mão trêmula dele, um revólver gelado e brilhante e carregado.

- Sim. Eu não blefo.
- Imagino que seja um péssimo jogador de pôquer, então.
- Nem tanto, eu sou sortudo.
- Mas e quanto a seu câncer? Se você me matar, seu câncer continuará existindo e, enfim, seu cérebro virará uma gosma cancerígena incapaz de pensar e qualquer outra coisa, enquanto você continua vivo para sempre por ter matado o próprio/a própria Morte.
- Como os imortais de Gulliver. Eu estou preparado para tudo isso.

Morte suspirou.

- Será sofrimento eterno. Olhe, por que trocar a incerteza de um Inferno pela certeza de um em vida?
- Porque eu gosto de ter certezas.
- Vá em frente, então, mate-me e mostre-me como foge de seu Destino. Espero que aproveite sua invalidez infinita após minha morte.

Abriram-se os braços de Morte como os de um mártir, como os daquele que se sacrificara em vão por toda a humanidade, e, quando o menino-adulto parecia ser apenas adulto, lá foram as balas de Pedro, buscando abrigo nos peitos de Morte. Voou longe, explodiu sangue, bateu na porta, caiu no chão.

Pedro suspirou, cansado e com dores de cabeça já infinitas. Talvez seu/sua Morte estivesse blefando e seu câncer cerebral não fosse durar para todo o sempre, junto com sua vida. Talvez houvesse uma melhora ou, ainda, fosse possível conviver com o câncer mantendo-se racional e são.

Sendo como for, era hora de dormir um pouco. Ficara tempos e mais tempos esperando Morte, preparado para se livrar de seu algoz. Agora havia de haver sono.

Dormiu.


Como Pedro conjecturava, Morte realmente blefava. O câncer não durou para sempre, já que acabou com o/a Morte de Pedro, naquela noite.

10 comentários:

  1. i, ó o cara, véi

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  2. haha, tipo sei lá né véi, vai ae nessa bagaça até o fim né mano, num vai pará os trampo no meio, que senão vai fica aqueles barato loco dos escritor cas obras póstuma inacabada, tipo história sem fim, tá ligado?

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  3. Foi muito, muito bom!

    Só achei o começo confuso um pouco demais, acho que faria bastante sentido se o final fosse sem sentido, ou não sentido.

    Mas foi muito, muito bom!

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  4. Eu tambem gosto de ter certezas.

    Acho que esse é o melhor texto seu que eu já li.
    Mas isso não é uma certeza.

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  5. seus temas inusitados lhe renderão uma grana ou, talvez, um lugar na calçada, com seu cobertor de flanela.

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  6. ou talvez eles sempre venham diretamente de algum lugar que você não viu. esses dias eu vi "o sétimo selo", um filme em que o cara tenta vencer da morte, personificada.

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  7. Acho que quem fez Premonição não ia EXATAMENTE gostar do texto...mas particularmente eu gostei...

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  8. bah, como a gente sabe que você num morreu, faz otro tezto bunitão, bunitão

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  9. Espero que a abordagem não seja hiper semelhante.

    Ademais, minha maior inspiração em relação à "morte personificada" é um mundo de humor medieval fantástico, Discworld.

    Boa volta para mim!

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