(anotações sobre  parte de uma viagem onírica não-ocorrida)
Acordei e senti minhas costas doendo e meu pescoço  rígido; soube, pois, que havia me transformado em uma Barata e que meus  dentes não estavam tão bem escovados quanto era de se esperar de uma  madrugada. Tentei me levantar e não tentei, porque tinha muita preguiça,  e então minha namorada (daqui para sempre será chamada A Ruiva,  ou, vez em quando, ela) continuava dormindo, por isso eu não a  incomodei e tentei voltar ao sono; não voltava o sono, me virei pra ela e  sorri, porque ela vestia a minha camisola preferida.
Antes que me entendam mal, eu não uso e nunca usei  uma camisola. Durmo sempre com uma camiseta velha e uma calça velha:  repito a calça durante duas semanas e a camiseta por 2 dias e meio,  aproximadamente. A camisola era d’A Ruiva e ficava muito melhor nela do  que em mim (suponho).
Acho que caí um pouco no sono, mas talvez ela tenha aberto os  olhos uma hora e visto meu rosto e ficado muito-muito afetada, porque  ela gritou e desmaiou e não sei direito, porque não acordei; dormia e  foi assim que acabou minha única madrugada metamorfoseado em Barata, não  foi tão mal quanto vocês podem imaginar.
***
Ufa, acordei e já não era mais uma barata e nem um inseto.  Minha barba pinicava, quem se importa, pelo menos eu tinha 4 pernas,  como sempre, e A Ruiva não estava mais deitada a meu lado, quem se  importa, ela sempre acorda mais cedo e vai comer alguma coisa. Nunca fez  café para mim.
Escovei meus dentes, lavei o rosto (um pouco) e cambaleei até a  cozinha, A Ruiva encarava uma xícara de café e levava os cabelos ao lado  do rosto bem bonitos, pena que sempre tome banho e penteie antes de  sair. Fica igual a todas as outras mulheres sérias que trabalham, mais  ou menos do mesmo jeito que eu sou igual a todos os outros homens sérios  que trabalhavam.
“Oi, bom dia, Ruiva.”
Ela assoprou o café e continuou o encarando e eu alonguei minhas  costas e meu pescoço e bocejei muito pra ver se chamava a atenção dela.  Beijei no pescoço detrás e ela abaixou mais a cabeça, assim eu beijei  mais e mais até que ela virou o rosto meio de lado pra mim e me olhou  nos olhos e aí eu percebi que A Ruiva não estava a fim.
“Acordou de pé esquerdo, foi?”
A Ruiva disse: “Tu não me olha assim que eu não  suporto”.
Triste, tão triste  tão cedo e por quê? Peguei o café dela (ela nunca fez café pra mim), me  sentei em frente dela e mergulhei algumas bolachinhas doces. Foi bom,  apesar de ser café solúvel, enfim, não somos ricos.
“Isso tudo só porque eu virei Barata durante a  noite?”
Tossi e limpei meu  nariz numa toalha de papel. Senti vontade de tomar suco e fiquei um  pouco mal por nunca termos suco de manhã, mastiguei uma bolacha a seco. A  Ruiva continuava mirando o lugar que tinha antes a xícara de café, as  mãos dela ao lado do pires. Seu relógio (não dizia nada) apontava 7  horas e 15, por isso não me surpreendi quando se levantou e falou que  precisava tomar banho e se arrumar.
“Eu posso te levar no trabalho, eu não tenho nada pra fazer,  mesmo”.
A Ruiva colocou  todas as coisas na pia e deslizou para o banheiro.
***
Se isso fosse um filme, mostraria A Ruiva tirando a camisola e  entrando sob o jato de água bem quente, ela levanta o rosto e molha seus  cabelos e fecha os olhos suavemente enquanto passa as mãos pelo rosto e  pelo cabelo. Os ombros também recebem água, as costas também,  (dependendo do filme, até a bunda) e os pezinhos perto do ralo. Se fosse  um filme americano clássico, o ralo teria uma significação de  escoamento da vida, e então alguém surgiria por trás da cortina do Box e  talvez se insinuasse de leve os peitos dela ou algo assim; este é um  texto brasileiro e poderia muito bem ser apenas um filme brasileiro, e  aí o ralo indica a posição social dos personagens e os peitos dela são  mostrados agora, quando ela sai para se secar e absolutamente nada de  diferente aconteceu na cena inteira. É tão bonito mostrar as mulheres  tomando banho!
***
Troquei minha roupa por uma coisa mais certa para o  lado de fora, peguei a chave do carro e fiquei na frente da porta do  banheiro a coçar minha barba. Que canseira! Mmm, sentei no chão e  comecei a cantar uma cantiga chinesa que eu aprendi com um amigo que  fazia Caratê, assim:
“Ê tsum pararara! Ô corum ritoráná! Maxuquê, ratatatá! Icudeiô  atamá tentem!”
A Ruiva sempre  gritava comigo quando eu fazia esse tipo de coisa, então eu estranhei  que o barulho do chuveiro continuasse sozinho e ela quieta muito. Me dá  um pouco de pena perceber como tem gente sem cultura nesse mundo,  intolerante com as manifestações dos outros totalmente... Mas ela é  linda e eu nunca encontrei alguém que tivesse tanta certeza das coisas  quanto ela.
O chuveiro parou e  eu levantei as orelhas, pronto pra pular em cima dela e morrendo de  vontade de fazer xixi. Foi então que eu percebi que nunca mais a veria  novamente, que aquela fora a minha despedida e Adeus aos cafezinhos  gostosos que ela nunca fez para mim, Adeus às massagens de uma só mão e  aos deliciosos Bolos de Cenoura. Me senti muito mal por isso, levantei e  fui embora daquela casa, mas que diabo (tranquei a porta, por via das  dúvidas)!
***
Consegui um emprego naquela tarde num bar-sinuca  do centro da cidade. Meu objetivo é perder para os jovens arrogantes que  aparecem por aqui e deixá-los eufóricos e acabar fazendo eles gastarem  tudo na bebida ou perderem pra um dos caras contratados pra ganhar dos  jovens arrogantes que aparecem por lá. Uma das coisas mais divertidas  que eu já fiz na vida, é quase como lutar boxe profissionalmente e ter  que se envolver com a Máfia e Rocky, não sei.
No fim da noite, me deixaram tomar o resto da  cerveja nas latinhas e acho que nunca tinha bebido tanto na minha vida,  porque foi a primeira vez que eu dormi no volante. Ainda bem que o carro  era treinado; acordei na frente de casa, com o rádio ligado e tudo.
A porta tava trancada, como eu tinha deixado e  assim vai. Que bom, que bom.
***
A Ruiva disse:  “Porra! Aonde você se meteu esse tempo todo? Você me deixou trancada  aqui e eu não tinha o que fazer e meu chefe já tá maluco comigo e você  vai só ver o que vai acontecer e quero ver quem vai botar comidinha na  sua boca daqui pra diante...!”.
“Não tem problema, Ruiva, eu arranjei um emprego bom.”
A Ruiva disse: “Porra! Emprego? Aonde você se  meteu? Você me deixou trancada aqui e eu não tinha o que fazer...!”.
“Desculpa, eu achei que você tinha pulado pela  janela do banheiro e fugido, aí não queria ficar que nem um tonto  esperando você enquanto você corria por aí.”
A Ruiva disse: “Porra!”.
***
A Ruiva dormiu de costas pra mim essa noite. Tudo bem, ela  ronca.
"É tão bonito mostrar as mulheres tomando banho!"
ResponderExcluirbom também são elas dormindo... algumas. brasileiras, uma vez que as americanas dormem maquiadas. e nós sabemos que maquiagem é pior que ronco.
ai, ruiva é uma pessoa na minha cabeça e o conto não encaixa na imagem que tenho dela. que sensação estranha...
ResponderExcluirisso me lembra alguma coisa (como se vê, não me lembra, mas deveria lembrar).
ResponderExcluirÉ pulp, também, ao que parece.
ResponderExcluirMas foi antes de ler pulp.
Nunca li pulp.
ResponderExcluirporra! eu gostei muito do desfecho, e do desenvolvimento também. muito bom.
ResponderExcluire a parada do kafka foi só uma muleta bem inicial eu achei. depois tem naaaada a vê.
É, bem, a parada do kafka tem mais a ver com o making of do que qualquer coisa. Eu pensei: Poxa, vou fazer um texto que parece baseado no kafka mas que depois vira outro tipo de absurdo. E é isso.
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