terça-feira, fevereiro 08, 2011

Arqueologia sentimental.

Hoje, sentei no chão e abri meu baú – pode parecer grande coisa, mas é só um negócio de plástico onde guardo Legos e bobagens de meu passado –, joguei as cartinhas todas no chão e fiquei mais ou menos feliz do nostalgismo do séc. XXI ter permitido que eu tivesse, de fato, algumas cartas na minha coleção de cartinhas sentimentais. Letras adolescentes de amigos adolescentes com problemas e paixões adolescentes – mais ou menos.

Tento fazer um levantamento por cima, sem abrir os envelopes ou desdobrar as cartas: 35% são de uma ex-namorada de que não gosto muito de me lembrar – mas os documentos precisam continuar vivos –; 20% acompanhavam presentes simbólicos de aniversário, provavelmente significaram alguma coisa quando os recebi, mas agora... o anacronismo devora quase todo sentimento posto no papel; recentemente adicionadas, 5% são cartas de ódio escritas por mim para um colega complicado com quem já discuti demais para que não fôssemos amigos – ele me deu uma caixa com tudo que eu havia escrito para ele, guardei-a sem coragem de ler meus xingamentos infantis na mesma caligrafia de hoje; talvez 35% de minha noiva, quando começamos tudo e ela me mandava seu amor codificado em todo tipo de animal bonitinho e florzinhas e cores fortes – dizendo assim, parece que os códigos pararam de valer; não, não.

Se minhas contas estiverem certas – certamente não estão, a margem de erro parece ser de mais ou menos 15% –, os 5% restantes são trocas amigáveis com outras pessoas chegadas à literatura, em que tentávamos, dançando as palavras, entender nossa amizade, nosso lugar no mundo, enfim, tentávamos dar função às nossas palavras. Exercícios de ficção na comunicação, provas de que podemos ser sinceros mentindo. Algo assim. Resolvi que devia começar minha autopesquisa por ali, afinal, era o que prometia uma leitura mais profunda e menos pessoal.

Exagero na introdução? Sim, acho que sim. Vou direto ao ponto, então, já que eu mesmo começo a ter dores de cabeça com o avançar da noite – ou da bebida. Não foi o primeiro envelope, mas foi um dos primeiros que averiguei. Simples, pardo, com algumas páginas de um dos textos mais honestos e bonitos que já li. Não sei direito o que houve entre nós (nada, na verdade, mas é aí que está o ponto), quase não nos falávamos, mas trocamos algumas cartas, e-mails e mensagens de celular – ai de mim, quebrando o anacronismo de minha própria história – que sempre me fizeram sentir próximo dela. Entendimentos por elipse, provavelmente o maior exercício de literatura cotidiana de minha vida.

Se paramos de nos ver, provavelmente foi porque as obrigações cotidianas (sei que repito a palavra, mas o cotidiano é assim mesmo) deixaram de existir, não havia mais escola ou faculdade que nos segurasse juntos. Se paramos de nos escrever, foi porque coisas assim acontecem, mesmo. Um dia, nos cansamos do livro.

... Sim, dispersei-me de novo, acho que é o conhaque, mesmo. Drummond disse uma vez que... Não, não, não é isso que quero citar. No meio de um monte de outras frases – que provavelmente não fariam sentido pra nenhum de vocês –, encontrei essa:

"aliás, eu sei que entre nós há muitos sins não realizados"

A verdade é que essa frase sempre me inquietou, claro, por aludir a tanta coisa em minha imaginação, ainda que parecesse uma promessa às avessas. O sim existiria se existisse a pergunta, mas ela não existiu e nem deverá existir – são as regras de nosso jogo. No entanto, percebi só agora há pouco um detalhe pequeno, que não altera o significado geral da frase mas adiciona uma provocação terrível que tem me perturbado um pouco. A caligrafia dela, usualmente vertical e correta – austera, digamos – inclinava-se na palavra sins. Na primeira leitura, provavelmente interpretei como uma espécie de entre-aspas, indicando que se tratava da palavra "sim" no plural. Mas o itálico... certamente era também um estrangeirismo, um anglicismo, que o valha.

"Sins" aos sins?  Era isso? Uma navalha, assim? Tão direto? Fui tão burro de ter deixado passar esse detalhe em uma carta de tantos anos atrás?

Se escrevi esta carta (que pode ser guardada em sua própria coleção, junto aos outros 5% que se disfarçam de literatura), é porque exijo explicações. Meu endereço é o mesmo, como pode ver no remetente.

Abraços,

8 comentários:

  1. Estreando uma fase transparente? Ou seria, justamente, o oposto? Não importa, navalha no gênero. Digo, não no gênero sexual, mas no gênero geral mesmo, não deixemos um comentário ambíguo ao futuro, nunca se sabe onde vai parar essa internet.
    O interessante é que o detalhe realmente passa desapercebido, o que mostra que é preciso também grifar a vida em alguns pontos que queremos importantes ou entender.

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  2. E quem há de explicar esse blog quando ele for o seu baú? *tchan*

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  3. Ou, rafael, ao contrário, devemos usar itálicos que se passem por aspas e que permitam, sabe-se lá quantos anos depois, uma leitura nova, destruidora, motivadora.

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  4. Navalha em tudo.

    Tento voltar à tese de que transparência e opacidade levam ao mesmo lugar. Se só consigo produzir opaco fazendo transparente – e vice-versa –, é o que devo tentar.

    Ninguém vai explicar o blog quando ele for baú, e aí teremos mesmo que pegar as palavrinhas e imaginar o sentido delas. Vamos errar muito, mas não existe certo quando se fala em comunicação.

    : )

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  5. Will the summer make good to our sins?

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  6. Mas caro Anônimo, o futuro não existe.

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  7. enfim, ela escreveu?

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