segunda-feira, fevereiro 18, 2008

A derradeira.

Na primeira vez em que me matei, meu nome era João. Escondi perfeitamente meu crime, como se fosse casualidade: narrava em terceira pessoa, e João era certamente mais baixo e mais feio que eu. Era um verdadeiro fodido, coisa que não sou, pelo menos não pareço ser. Fiz com que ele — ele era eu, espero que vocês entendam — levasse o tiro de um assaltante barato e burro; morreu, e nenhum dos meus leitores lhe deu muita atenção.

Aquele primeiro suicídio me foi alentador, foi indolorosamente inodoro e quase impessoal; no entanto, tive que repetir a dose com Lola — a vida dela acabou ao tropeçar na merda da bosta dum cachorro que havia sido deixada para lá por sua dona, de forma que o conto tinha quase um caráter ambientalista —, que, ao menos, era escritora como eu. As pessoas ao redor aplaudiram a queda de Lola e ficamos quietos, não podíamos contar que nossa morte fora proposital.

Pediram-me, pura coincidência, para escrever algumas notinhas sobre Maiakovski: deliciei-me escrevendo, ao fim da minúscula biografia, as palavras "Suicidou-se". Ali estava eu me matando mais uma vez, junto também com Iessienin, poucos anos antes. Eu tirava a minha vida ao mesmo tempo que criticava a fuga pelo suicídio de Iessienin, que também era eu e todos nós, soviéticos.

Uma série de outros nomes vieram vindo ao meu caderno, compunha também outras biografias, todos os escritores acabavam com o simples "Suicidou-se", Quiroga suicidou-se, Toole suicidou-se, Daniel suicidou-se, Gogol praticamente suicidou-se, porra, Hemingway suicidou-se e toda essa corja nojenta era eu e me destruí cada vez que acabei de falar de um dos meus outros eus - ninguém leu meus pequenos resumos.

Cada personagem que matei, nesse interim, foi um ato lúcido de auto-assassinato. Sendo como for, tudo só serviu como apaziguamento, inclusive as mortes em primeira pessoa. Os narradores morriam e a história acabava, ou então artificialmente tudo continuava — não acredito nessa coisa de vida após o fim da vida — e dava no mesmo: era real, mas não o suficiente. E nenhum de vocês sequer desconfiou.

Mato-me de novo, agora, logo após o fim deste conto. Parece definitivo e verdadeiro, parece muito além das quasiverdades literárias, parece melhor do que dar meu nome para algum personagem e então enterrá-lo, parece digno de uma biografia feita por alguém mais. Foda-se. O método é simples e não importa, e me dou ao luxo de escrever no presente quando, obviamente, falo do futuro.

Pois bem. Agora, suicido-me.

4 comentários:

  1. É engraçado ver a influência de coisas e tal em textos, agora eu entendi o que julia quis dizer quando me disse isso. Toole, não? Jeje. Eu gostei, e achei estranhamente mais 'straightforward' no uso de uma 'idéia' do que a maior parte das coisas suas qu'eu li. Mas quem sabe.

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  2. "Da vez primeira que me assassinaram
    Perdi um jeito de sorrir que eu tinha..."

    Tá não tem NADA a ver, mas eu lembrei :)

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  3. Guilherme Ramos Gonçalves, (tru)suicide este.

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  4. Certamente seu melhor texto. E finja que eu estou falando sob uma perspectiva puramente técnica.

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